ENTREVISTA DA SEMANA: Desembargador Nélio Stábile

20/05/2019 09:40 610 visualizações
Foto: Wanderson Lara
Magistrado fala sobre os dilemas jurídicos da busca do direito da saúde digna

O desembargador Nélio Stábile ingressou na magistratura como juiz de direito em junho de 1988. Começou a carreira na 4ª Circunscrição e a primeira promoção veio pouco tempo depois, no mesmo ano, para titular da Vara Cível e Criminal de Itaporã.

Em dezembro de 1990 uma nova promoção o levou para Três Lagoas, comarca de 2ª entrância, e judicou na 1ª Vara Criminal até abril de 1999, quando foi promovido para a entrância especial e assumiu a 1ª Vara de Fazenda Pública e Registros Públicos da Capital.

Foi eleito para o cargo de desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul em março de 2015. Atualmente é o coordenador do Comitê Estadual do Judiciário para a Saúde.

O Estado – A dificuldade de acesso das pessoas aos remédios caros, ou a tratamentos mais complexos, tem feito com que o Judiciário seja cada vez mais acionado. Mais que isso, têm surgido cada dia mais decisões obrigando os gestores (governadores e prefeitos principalmente) a tomarem providências imediatas a respeito, com o risco até de decretação de prisão e bloqueio de receita. Recentemente, os governadores estiveram em Brasília reclamando do excesso de judicializações…
Nélio Stábile – Esta é uma reclamação geral da população, do Judiciário, da Defensoria, do Estado e do município porque realmente há muitas ações.

O Estado – Nesse caso o que o Judiciário acha?
Nélio Stábile – O Comitê Nacional de Judicialização tem a função, a princípio, exatamente de diminuir a judicialização. Seja por impedir ou diminuir as ações indevidas, e tem muitas, como também melhorar a atenção do poder público com a saúde para que não sejam necessárias as ações.

O Estado – O que seria uma ação desnecessária?
Nélio Stábile – A ação desnecessária, às vezes, as pessoas entram com pedido para obter medicamentos que já são fornecidos normalmente no serviço público. O que acontece é que algumas vezes há falhas ou falta ocasional, mas muitas vezes existem esses medicamentos que a pessoa demanda. Esse não é o maior número de ações. Há também ações em que a pessoa tenta ou pretende avançar numa fila, então, por exemplo, as cirurgias ortopédicas eletivas, aquelas que não sejam extremamente urgentes. Existe uma fila, então a pessoa vai aguardar por dois anos, digamos, então ela entra com uma ação e, se o juiz conceder uma liminar, uma tutela antecipada, nesse caso é determinado que se faça em 30 a 60 dias a cirurgia, que configuraria uma espera de dois anos. Ótimo para aquela pessoa, mas um prejuízo para os demais que estão esperando!

O Estado – Então o que pode ser feito?
Nélio Stábile – Aumentar o número de cirurgias que o Estado e o município oferecem. Nós fizemos, no âmbito do Comitê Estadual da Saúde, um termo de cooperação entre o Ministério Público Federal, que faz parte do Comitê, e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, por meio do Hospital Universitário, para fazer as cirurgias eletivas ortopédicas, porque eles têm médicos, equipamentos, local, sala de cirurgia. E em parte ociosos. Então eles poderiam fazer essas cirurgias. Ocorre que há um problema muito sério que se refere às próteses a serem fornecidas pelo SUS.

O Estado – Qual tipo de problema o SUS enfrenta em se tratando de adquirir as próteses?
Nélio Stábile – Em Mato Grosso do Sul atualmente tem o seguinte problema: o Estado abre uma licitação para aquisição de órteses e próteses e nenhuma empresa se habilita a vender no preço pedido pela licitação. Não tendo a licitação, a pessoa entra com uma ação contra o Estado ou o município, por meio de um médico particular, para obter essa prótese. O Estado é obrigado a comprar essa prótese a preço cheio de última hora, sem licitação. Ou seja, é como se existisse um cartel. Já aconteceu algum tempo atrás, o que ficou conhecido como a “Máfia das Próteses”, em quase todos os estados, incluindo MS. Ainda hoje temos dificuldade em obter essas próteses por meio de licitação. 

O Estado – O senhor acredita que para as empresas é mais vantajoso venderem por judicialização?
Nélio Stábile – Sem dúvida alguma. Porque aí eles estabelecem um preço e o Estado não tem outra saída senão comprar. 

O Estado – A doença é um bom negócio para empresas assim? 
Nélio Stábile – Por vezes é sim. Não só na questão de órteses e próteses, o que atualmente tem acontecido, como nos remédios de altíssimo custo. Especialmente os remédios contra câncer, que são inventados ou desenvolvidos no exterior e vêm para o Brasil a um custo altíssimo de 25 a 400 mil a dose, então um tratamento pode chegar a milhões. Essa empresa diz que vai curar o câncer ou vai melhorar a situação de vida do paciente, só que não há nenhuma evidência científica comprovando a eficácia desse remédio.

O Estado – Medicamentos experimentais de alto custo causam uma oneração?
Nélio Stábile – Os medicamentos experimentais e os de altíssimo custo que não estejam registrados na Anvisa na verdade não podem ser dispensados pelo poder público. Muito embora possa haver registro na Anvisa a pessoa pode comprar esse medicamento, mas se ele não estiver incluso na relação do SUS que se chama Renami. O Estado não é obrigado a fornecer. O que o Estado precisa fornecer por meio do SUS é o medicamento que conste na Renami, que é essa relação e tenha efeito terapêutico. Ainda que não seja o melhor medicamento, o Estado tem de fornecer medicamento para todos os problemas de saúde de toda a população. Por isso ele não teria condições de fornecer o que há de melhor para todos.

O Estado – Qual seria o plano ideal?
Nélio Stábile – O ideal é que tivéssemos no SUS medicamentos eficazes disponíveis para todos. A gente sabe que isso não é possível. Na prática não é possível por falta de recursos. Então o que o Estado, o ente público deve fornecer são medicamentos que tenham efeitos terapêuticos, segundo a medicina, baseados em evidências científicas e que possam ser dispensados a todos. 

O Estado – Com a reunião que houve no STF pela modulação da judicialização, o que o senhor acha que seria a tendência do STF?
Nélio Stábile – O artigo 196 da Constituição da República determina que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios são solidários. A atenção básica de saúde cabe aos municípios, a atenção de maior complexidade cabe aos estados e as de altíssima complexidade cabem à União. Mas se a pessoa demandar contra o município, pedindo atendimento equivalente à altíssima complexidade, o município é obrigado a fornecer. Então, se a gente imaginar Tacuru, se alguém pede um medicamento cujo tratamento vai ser 2 milhões de reais, o município será obrigado a custear.

O Estado – Inclusive tivemos casos de pedido de ordem de prisão de secretário de Saúde e prefeito por decisões judiciais.
Nélio Stábile – Sim. O secretário de Saúde não tem como resolver problema financeiro do município e do Estado. Eu, particularmente, acho impróprio pedido de prisão, porque ele obviamente vai cumprir determinação judicial se for materialmente impossível; não é ele o responsável, mas sim o ente público. O ente público, quando ele não cumpre a solução, é bloquear e apreender importâncias. O pessoal costuma chamar isso de sequestro de verbas, mas não é sequestro, é bloqueio de verbas.

O Estado – Em uma visão geral como o senhor vê este quadro: de um lado a gente tem a saúde, que é um dever do Estado, e no outro lado a gente tem o SUS universalizado e tem o cidadão que depende do tratamento, do medicamento caro, e às vezes não é tão caro assim, mas não encontra no posto e a pessoa tem de buscar o Judiciário!? E em casos extremos tem essa determinação de prisão. Como o senhor vê um caminho para melhorarmos esse cenário?
Nélio Stábile – Tudo passa pela boa prestação de serviço ofertada à população. O problema é a falha ou falta que o poder público tem ao fornecer medicamentos. Eu entendo perfeitamente que é um custo alto e que o poder público não tem condições de fornecer o que tem de melhor para todos. Mas, tanto quanto possa melhorar, vai diminuir a judicialização. E a judicialização sempre é mais cara que o fornecimento voluntário, do que a conciliação. O que os governadores foram discutir no Supremo é uma modulação nos julgamentos judiciais. Mas no Superior Tribunal de Justiça foi julgado um recurso e o resultado desse julgamento é uma aplicação obrigatória em todo o Brasil. Ficou definido que os medicamentos que não são fornecidos pelo SUS, para serem fornecidos, têm de preencher três requisitos: o primeiro é que o medicamento fornecido pelo SUS não tenha efeito terapêutico comprovadamente; o segundo requisito é que a pessoa não tenha condições econômicas de adquirir o medicamento; o terceiro é que o medicamento esteja registrado na Anvisa. Na verdade a gente tem de ser realista: se o SUS oferece medicamento simples para dor, a gente não pode querer que ele ofereça um medicamento ultratop para a mesma coisa, a não ser que o oferecido não faça efeito. Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça deu um norte para as decisões judiciais.

Insuficiência do Estado e consequência da judicialização
O coordenador do Comitê Estadual de Saúde, Nélio Stábile, destaca a criação de departamentos para evitar tantas contendas. “O gasto com a judicialização pelo estado – e o estado é realmente o maior demandado –, o gasto é muito elevado. Criamos departamentos de auxílio profissional aos magistrados, que é o Núcleo de Apoio Técnico; são médicos, farmacêuticos, e enfermeiros. Assim que é distribuída uma ação relativa à saúde, como tratamento, cirurgia, medicamento, internação, automaticamente uma cópia dessa petição vai para esse núcleo.

E esse núcleo elabora um parecer sobre 11 aspectos. Qual é o produto que está sendo pedido, para que ele serve, qual é a doença do paciente, se aquele medicamento ou tratamento é efetivo ou não? Todas essas considerações necessárias. E esse parecer é enviado ao magistrado. Então o magistrado tem condições de avaliar, porque nós não somos médicos, nem farmacêuticos, não é?”

Indústria farmacêutica Casos constantes
Entre as questões da judicialização estão os medicamentos de alto custo. O desembargador questiona alguns casos. “Toda indústria farmacêutica visita os médicos, seja no SUS e principalmente os particulares. Nisso eles oferecem os medicamentos, agora, se é fornecido algum outro benefício ao médico, como ele ser beneficiado por prescrever certos tipos de medicamentos, isso realmente eu não sei. Presumo que possa haver, mas não sei dizer realmente”, acredita.

Casos constantes
Para as gestantes, Stábile lembra que o SUS fornece a heparina sódica, que atua muito bem só que precisa ser tomada duas vezes ao dia. “Isso gera problemas e o Estado vem tentando incluir a enoxoparina no hall de medicamentos que produzem maior conforto às gestantes. No ano passado, inclusive, recebi a comunicação sobre um pedido que fizemos a respeito do que está sendo judicializado em Mato Grosso do Sul há mais de dez anos”, destaca.

Liziane Berrocal

Matéria publicada no site O Estado Online